Por LIVROTECA BRINCANTE DO PINA*
Cercada por arranha-céus, prédios de luxo e condomínios fechados dos bairros do Pina e Boa Viagem, o Bode, Comunidade Tradicional Pesqueira localizada na Zona Sul do Recife, segue resistindo às ofensivas da especulação imobiliária e violência do Estado.
A comunidade do Bode integra a ZEIS (Zonas Especiais de Interesse Social) do Bairro do Pina. De acordo com a Prefeitura do Recife, aproximadamente 12.000 habitantes vivem em uma extensão territorial de 1 km², entre palafitas, barracos e casas de alvenaria localizadas às margens do Rio Capibaribe. Situada entre dois dos bairros mais caros e elitizados de Recife, Boa Viagem e o Pina – atual metro quadrado mais caro da cidade –, a comunidade encontra-se inserida em uma lógica urbana que privilegia os interesses das classes mais abastadas e do capital privado. O processo de verticalização sofrido evidencia um contraste muito além do arquitetônico: a desigualdade social.
Apropriando-se dos sonhos de melhorias nas condições de vida, as grandes imobiliárias, em parceria com a Prefeitura do Recife, prometem um planejamento de cidade mais justa e para todos. No entanto, essa dinâmica é pensada virada de costas para o mangue e de frente para o mar, sem levar em consideração os modos de vida, memórias e necessidades da população. Assim, as grandes construções urbanas dos últimos anos, como, por exemplo, o Shopping RioMar, concluído em 2015, tem seu início e término concretizados sem consulta popular ou mesmo pesquisas que mensuram o impacto direto no cotidiano dos moradores e moradoras que, além de serem retirados dos seus lugares, vêem a sua principal fonte de renda ameaçada, já que grande parte da sujeira produzida pelo empreendimento é expelida na maré, poluindo as águas e dificultando a atividade de pesca. O controle e nivelação da cidade, desse modo, não se restringem a ignorar a existência de determinados grupos sociais, com seus anseios e histórias, mas também surge como uma tentativa de expulsá-las da paisagem urbana.
No bairro do Pina, o projeto de habitacional e espaço público desenvolvido pela Prefeitura do Recife para o terreno do Antigo Aeroclube de Pernambuco avança sem participação da comunidade que mora no entorno. Desapropriado em 2013 para a construção da Via Mangue, o terreno passou por um período de disputa na Câmara Municipal, até ser apresentada a proposta de habitação popular, com a construção do Conjunto Habitacional Encanta Moça I e II, UPA e creche. A área reservada para moradia e equipamentos públicos, no entanto, ocupa a menor parcela do terreno, sua grande extensão destina-se à construção do que é apresentado como maior parque urbano da cidade do Recife, com 11,9 hectares de área.
Na capital pernambucana, o déficit habitacional chega a 71 mil casas, o que torna as promessas políticas de moradia popular rentáveis eleitoralmente. A construção do habitacional destinado às famílias moradoras de palafitas da comunidade do Bode, Beira Rio e Brasília Teimosa foi uma das principais bandeiras de campanha do primeiro mandato do atual prefeito Geraldo Júlio (PSB), em 2012. Após 8 anos de espera, as obras começaram no segundo semestre de 2020, ano de eleições municipais. Sem a participação das famílias que residem nas palafitas, as obras seguem interferindo nas dinâmicas de cooperação e gerando situações internas de conflito, já que o número de 600 moradias apresentado pela prefeitura não corresponde às demandas por habitação das comunidades vizinhas.
“O habitacional… seria bom o habitacional… Mas para mim mesmo, seria melhor aqui, na ocupação. Porque aqui a gente faz de alvenaria, do tamanho da gente. A gente tá acostumado aqui, já conhece as pessoas, os vizinhos… ” explica Márcia, 52 anos e moradora do Sítio dos Pescadores, desde a criação da ocupação no Bode, em 2015. Assim como a maioria dos moradores da comunidade, o sonho de Márcia é poder ter acesso à moradia digna e segura, sem risco de despejo por parte do poder público, ou de desastres associados às chuvas fortes e incêndios influenciados pelo sistema de eletricidade improvisado. Devido à falta de infra-estrutura, no mês de agosto deste ano, um incêndio acometeu o Sítio dos Pescadores, impactando diretamente três residências e colocando em risco todas as famílias. Após a situação de calamidade, mais precisamente no dia 5 de outubro, data em que se comemora o Dia Mundial do Habitat, as 96 famílias moradoras da ocupação conquistaram, ao lado do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e da Mandata Coletiva das Juntas (PSOL), a regularização fundiária da área.
Sabe-se, no entanto, que a criação de habitacionais não é o suficiente. É preciso que exista, simultaneamente, a elaboração de projetos políticos que acabem com as raízes da desigualdade. Há uma necessidade de mudança que vai além da moradia. A ausência de vontade real de colocar fora do estado de pobreza as pessoas se escancara nas promessas feitas pelo Estado, onde não há, por exemplo, um planejamento sobre como aquelas pessoas realocadas nos habitacionais vão manter as despesas com energia elétrica e água encanada, ou como elas vão acessar a sua fonte principal de sustento: a maré. Uma solução igual para todas as pessoas não permite o acesso à igualdade; ao contrário, uniformiza modos de vida, saberes e paisagens, desacelerando o processo de chegada a uma sociedade mais justa, respeitosa das diferenças e necessidades.
As palafitas são moradias tradicionais em comunidades pesqueiras e estão presentes em outras regiões do país. Basta conversar com um dos moradores da comunidade para entender a urgência da criação e efetivação de políticas de preservação. A consequência da ausência de planejamento público destinado a esse tipo de habitações, sustentadas por estroncas de madeira às margens do rio, é a precarização. Mayara, 20 anos, morando em uma palafita desde criança, explicou que as madeiras não tratadas para uso em área molhada e sujeitas às oscilações da maré, precisam ser trocadas a cada 6 meses para não cair. Esse mesmo cuidado vale também para as paredes e telhados, assim como o chão das casas. A necessidade de troca semestral das estroncas contradiz a ideia comum de que as pessoas que vivem em palafitas moram “de graça”. Além disso, as famílias moradoras relatam ter perdas materiais e/ou sofrerem acidentes dentro de casa devido ao apodrecimento do material em que as palafitas são construídas.
Quando a maré enche, a água traz de volta o lixo da cidade para dentro das casas, e com eles os ratos, expondo seus moradores a zoonoses. Crianças andam em meio ao lixo e mães, como Lene, que nos relata as noites mal dormidas com medo que os ratos que circulam nas palafitas mordam seus filhos. A maré e o manguezal acabam virando um esgoto a céu aberto por causa do descaso das autoridades públicas que, além de prejudicar as oportunidades dos moradores de saírem do estado de pobreza, invisibiliza e destrói um patrimônio urbano e ambiental do país: o ecossistema do manguezal. O mangue é o berço de várias espécies e de grande importância para a melhoria do ar, por servir como um filtro biológico, absorvendo boa parte dos nutrientes advindos da poluição nos rios, além de fonte de renda e alimentação de diversas famílias que vivem da pesca.
O Recife se ergueu sobre o manguezal e possui a maior área de mangue em espaço urbano do país. Ainda assim, persiste a necessidade de investimentos públicos para um melhor direcionamento do lixo produzido na cidade, como a implementação e aumento da coleta de escombros e do tratamento de esgoto para as comunidades contíguas à maré. Aliado a isso, conscientizar e educar toda a sociedade sobre a valorização do mangue ainda se faz necessário.
Enfrentando essas dificuldades e na urgência de encontrar soluções para conseguir sobreviver, os moradores respondem por meio de organizações coletivas. A maioria das palafitas são erguidas e mantidas em modelos de autoconstrução, por meio da cooperação de familiares e vizinhos. Coletivos criados dentro da comunidade como a Livroteca Brincante do Pina, uma biblioteca comunitária, e a aceleradora social Palafitti Produções, que nasceram às margens da maré, dentro de palafitas, e são referências de ações em nível cultural e político.
O fato é que a comunidade do Bode não é um caso isolado. O descompasso existente entre as necessidades de milhares de pessoas e as políticas de habitação social, visto que somente 10.072 moradias populares foram construídas nos últimos 19 anos, se reflete nas lutas diárias, muitas vezes em condições desumanas, que muitas comunidades do Recife ainda enfrentam. Situação agravada pela crise sanitária da Covid-19, que revelou, mais uma vez, o quanto as existências, capacidades e conhecimentos de moradores de favelas estão sujeitos à desvalorização estrutural. Além dos problemas rotineiros, que vão desde incêndios até doenças transmitidas por ratos, as comunidades sofrem os maiores impactos da pandemia.
Primeiro pelas dificuldades de manter o isolamento social e higiene pessoal quando as casas possuem em média dois cômodos e não se tem água encanada. Segundo pelos danos colaterais da pandemia, como o aumento substancial dos preços de bens de primeira necessidade, desde o botijão de gás até o álcool em gel. Passado o auge da pandemia, restam seus ecos, como a precarização dos postos de trabalho e o aumento do desemprego. Para quem vem ouvir, muitas vezes as histórias dos moradores são de luta para conseguir o básico necessário. Assim, Lelo, desenhista autodidata de 26 anos, conta que coloca de lado seu sonho de ser desenhista profissional para trabalhar em outras atividades e conseguir renda suficiente para sustentar a família e realizar melhorias em sua casa, onde vive com a sua esposa e suas três filhas.
Moradia digna é um direito humano somente garantido quando há respeito às culturas, pertencimentos e histórias de todos e todas. As comunidades pesqueiras são patrimônio da nossa cidade e a melhor maneira que pescadores e pescadoras encontraram para ter acesso à maré, por isso, precisam ser mantidas de pé, com dignidade. É necessário haver uma resposta estatal imediata e eficiente, que incorpore as demandas de seus habitantes em suas ações. Como aponta Leydiane, 25 anos, mãe de 2 filhas e moradora do Beco do Sururu: “Precisamos de uma moradia digna, onde a gente pode botar a cabeça e dizer que não vai sair, não vai ter risco de cair, e não vai ter medo de ir ali na venda e voltar com tudo destruído, tudo caído e a maré levando.”
*A Livroteca Brincante do Pina é um projeto de incentivo à leitura, integração artística, cultural e ambiental que tem como base uma biblioteca comunitária, com foco na informação popular. É localizado na Comunidade do Bode, bairro do Pina, Zona Sul do Recife. Nesse tempo de pandemia, a Livroteca se mobiliza para informar a população do Bode acerca do coronavírus e realiza ações de assistência emergencial, entregando comida e materiais de higiene para as famílias da comunidade.